A jovem atravessou de mansinho o quintal até chegar ao portão que dava para
rua, o abriu com suspense de cinema a fim de que um ruído não chamasse a atenção da
mãe, que estava lá dentro da casa, na outra ponta. Em gesto silencioso e furtivo
atravessou o portão e agachou-se na calçada, onde um amigo a aguardava também
agachado.
- E então? Perguntou-lhe em voz baixa
Ele estendeu-lhe uma mochila em lona impermeável verde, aquelas
usadas no exército na década de 70.
- Tome. – Disse ele – Tenho duas, te empresto uma.
Ela olhou, tomou a mochila, dobrou-a ao máximo que pode, a fim de
esconde-la sob a blusa de algodão que vestia. Coração ansioso voltou o olhar reflexivo
ao amigo pegando-o pelo braço, aflita, inquiriu-o:
- E o que é bom que eu leve nela?
O amigo sorrindo brejeiro à dúvida da amiga responde:
- Sei lá. Estou levando meias, leve também. Pode ser que esfrie, leve
coberta, agasalho; tambem leve peças íntimas, pode ser que queira ou precise. - Ah, entendi.
(pausa)
- Por volta das 18 horas, na praça? Isto?
- Sim! – Pegou uma pontinha de baseado guardado em uma caixinha de
fósforos, ascendeu-o tragando e estendendo-lhe – Este é o melhor horário para sairmos e
chegarmos a tempo de pegar o último trem que desce a serra.
Pegando a ponta de baseado, após tragar e devolve-lo, a amiga comenta
sorrindo:
- Levarei flautas!
Ela aprendera a confeccionar flautas doce em bambu e canos de PVC,
sempre tinha algumas prontas. Na bolsa sempre havia uma também, a qualquer
momento, de repente, ela costumava tirar uma flauta da bolsa e soprar algo que lhe
ocorresse. ‘Stairway to heaven’ era uma de suas favoritas na época, costumava dizer
que esta era “excelente para relaxar a mente”.
- Que legal! Ahhhh ... isso será ótimo! Aliás, acho que tenho uns
chocalhos, se eu achar, levo também.
- Massa! Vou nessa, tomar providencias. – levantou-se, encaixou a
mochila sob a blusa, e despediu-se ainda – Até mais. Valeu!
- Combinado flor. Olha a hora heim! Até mais.
Ansiosa, o temor que a mãe lhe descobrisse planejando a viagem de
carona, a primeira de sua vida, a enchiam de cuidados, nesse meio entre medo,
felicidade e expectativa.
A juventude dos nascidos até meados dos anos 60, ainda estavam
envolvidos pela atmosfera alternativa, estilo hippie, conceitos beat nick’s. Ainda que os
tabus, as leis e os medos ameaçassem os sorrisos livres, ainda assim, a liberdade, a paz,
o amor e a fraternidade foram o cotidiano de gerações da transição do pensamento, dos
que fugiram dos últimos sopros do convencional, para não sufocarem com os obsoletos
e autoritários conceitos sociais, que aos poucos se transformavam. Não havia regras,
não havia gerencia, apenas a consciência de ‘ser’. Jovens, intelectuais, artistas e toda a
sorte de pessoas se reuniam em bares, calçadas ou praças, batendo papo, falando muito
sobre religião, história, música, cultura, literatura e todos os elementos que até então
compunham sociedades pelo mundo afora. Tocavam instrumentos, cantavam, faziam
artesanato e muitas vezes, dormiam aconchegados por ali mesmo. “Sexo, drogas e
rock’n roll” foi um lema surgido em algum lugar para defini-los, mas que não os
incomodavam. Momento de muita fertilidade criativa em todos os aspectos e setores.
As mentes estavam agora prontas para construir as estruturas de uma vida
fraterna e pacífica.
A jovem chegou à praça onde aos poucos todos foram chegando; fizeram um
apanhado das economias, se puseram a fazer contas e calcularam os valores para
apanhar o trem na Estação da Luz que descia a serra para a baixada santista. Lá
participariam de um festival de musica na orla da praia que durou três dias. Ao final do
festival decidiram continuar pela estrada, vendendo seus artesanatos, conheceram várias
pessoas, várias comunidades, fizeram amizades, deixaram e levaram boas lembranças.
Tiveram dúvidas, contradições, algumas vezes se dispersaram, se reencontraram mas,
sempre com seus lindos sorrisos, dispostos a ouvir, refletir, acrescentar, acolher,
conhecer, renovar. “- Os cenários de uma viagem sempre fazem tão bem!”, disse um
deles.
No retorno a jovem se viu diante da mãe que, a olhava em um rápido silencio
pois, ensaiou um sincero e tímido abraço, que estendeu à ela perguntando-lhe um “Tudo
bem?!”. Estampava um radiante sorriso!
Assinado: Flauta de Bambu
Pseudônimo usado no concurso 'baseado na estrada' - 50 anos do Movimento Hippie da editora Costelas Felinas , escrito em Maio de 2016.